sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Olhos Negros



OLHOS NEGROS

                Havia um tempo em que as jabuticabas eram fartas naquele pé. A garotada se deliciava em subir nele para colhê-las. Uns se saboreavam, chupando-as. Outros as desperdiçavam, jogando nos transeuntes; seja naqueles que não admiravam as jabuticabas, mas só olhavam para o chão; seja naqueles que outrora as saborearam, mas agora se tornaram adultos, eram “importantes” e não tinham mais tempo para subir em jabuticabeiras. Havia alguns passantes que ficavam de longe, olhando com ar nostálgico a garotada nos galhos, porque eram muito velhos e, mesmo que quisessem, não tinham mais forças para voltarem a subir como dantes.
                Isso durou um longo tempo, pois as jabuticabas eram sempre abundantes, belas, fascinantes, consistentes e saborosas; e havia muitos garotos ruivos, loiros e morenos que sabiam subir em árvores e as adoravam para chupá-las ou arremessá-las, para saboreá-las ou desperdiçá-las.
                Ninguém ficava à margem da influência das negras jabuticabas. Os garotos que as apreciavam, usufruíam do seu néctar; os que não tinham capacidade para isso, perdiam-nas, jogando-as com desdém e divertimentos nos boçais caminhantes que abafaram o seu coração. E os velhos... 
               
                Mas chegara a maldição e as jabuticabas se escassearam. Pouco a pouco os garotos foram abandonando a sua aventura. Até que tudo se acabou. Ninguém mais podia deleitar-se ou divertir-se naquele lugar. Acabaram-se os festins e as algazarras. Assim, os andantes amorfos podiam passar mais tranquilos debaixo daquele pé; mas iam mais tristes também, pois o restante de mocidade que jazia neles percebia a aproximação do fim das oportunidades que alguém pudera ter para se alimentar daquela fruta possuidora no seu interior de uma vida imensa.

                Depois de muitas eras passadas, eis que um garoto loiro se aproximou daquela árvore, olhou para o alto e desejou escalá-la, como tantos outrora haviam feito. Porem, já não havia jabuticabas e ele chorou. Atrás dele chegou um garoto ruivo, seus olhos eram de fogo, mas seu coração não tinha cor. Ele olhou para cima e descobriu bem lá no alto uma enorme e brilhante jabuticaba, a mais preta e grande jamais nascida. Almejou-a e se pôs a subir de galho em galho ao seu encalço. Ia se aproximando cada vez mais do seu prazer, que era mau.
                Mas o loiro acordou do seu torpor, parou de chorar e, com seus olhos azuis, também viu a bela e única jabuticaba que restara. Com um coração mais ardente de paixão e com vontade destemida, galgou aquela árvore da vida, desejando ser ele a saborear aquela derradeira fruta, que parecia um diamante negro lapidado pelo vento. Seu amor era mais leve, por isso subiu com agilidade e passou o ruivo. Este, vendo-se suplantado, odiou o loiro que a sua frente subia com coragem; se encheu de brios e desejou chegar à frente para esmagar com raiva e desprezo na cabeça de seu inimigo aquela última jabuticaba.
                O loiro chegou primeiro e primeiro apanhou a formosa e extrema fruta. Mas não soube ou não quis saboreá-la logo: contemplou-a com adoração, pensando ser ele o último a desfrutar daquele mel.
                Demorou-se em pensamentos e essa sua fraqueza foi fatal. O ruivo alcançou-o e tomou-lhe com a força do seu ódio a negra fruta. Ia esmagá-la, sem dó nem compaixão naqueles dourados cabelos, quando ouviu, vindo do chão, a voz altiva e intrépida de um garoto de cachos morenos e olhos negros, que lhe ordenava a se deter e não seguir adiante na sua insensata ação, pois chegara a hora em que nem ruivo e nem loiro poderiam mais usufruir com amor ou com ódio daquele fruto de pulcro interior.

                Com olhos inflamados pela raiva, o garoto ruivo jogou violenta e determinantemente sobre o moreno aquela última e desventurada jabuticaba, que fatalmente iria se esmagar naqueles cabelos trigueiros.
                Mas não era um qualquer que debaixo alçara a voz. Seus reflexos eram ágeis e sua delicadeza firme. Por isso, antes que a doce jabuticaba pudesse explodir e perder-se em seus fios capilares, ela foi amortecida em suas mãos e acolhida com amor jamais brotado de um coração menino. Naquelas mãos brancas a majestade da fruta tornou-se mais exuberante e o moreno, com prazer insuperável e gigante serenidade, saboreou aquela última jabuticaba e foi feliz.