OLHOS
NEGROS
Havia um tempo em que as jabuticabas eram fartas
naquele pé. A garotada se deliciava em subir nele para colhê-las. Uns se
saboreavam, chupando-as. Outros as desperdiçavam, jogando nos transeuntes; seja
naqueles que não admiravam as jabuticabas, mas só olhavam para o chão; seja
naqueles que outrora as saborearam, mas agora se tornaram adultos, eram
“importantes” e não tinham mais tempo para subir em jabuticabeiras. Havia alguns
passantes que ficavam de longe, olhando com ar nostálgico a garotada nos
galhos, porque eram muito velhos e, mesmo que quisessem, não tinham mais forças
para voltarem a subir como dantes.
Isso durou um longo tempo, pois as jabuticabas eram
sempre abundantes, belas, fascinantes, consistentes e saborosas; e havia muitos
garotos ruivos, loiros e morenos que sabiam subir em árvores e as adoravam para
chupá-las ou arremessá-las, para saboreá-las ou desperdiçá-las.
Ninguém ficava à margem da influência das negras
jabuticabas. Os garotos que as apreciavam, usufruíam do seu néctar; os que não
tinham capacidade para isso, perdiam-nas, jogando-as com desdém e divertimentos
nos boçais caminhantes que abafaram o seu coração. E os velhos...
Mas chegara a maldição e as jabuticabas se
escassearam. Pouco a pouco os garotos foram abandonando a sua aventura. Até que
tudo se acabou. Ninguém mais podia deleitar-se ou divertir-se naquele lugar.
Acabaram-se os festins e as algazarras. Assim, os andantes amorfos podiam passar
mais tranquilos debaixo daquele pé; mas iam mais tristes também, pois o restante
de mocidade que jazia neles percebia a aproximação do fim das oportunidades que
alguém pudera ter para se alimentar daquela fruta possuidora no seu interior de
uma vida imensa.
Depois de muitas eras passadas, eis que um garoto
loiro se aproximou daquela árvore, olhou para o alto e desejou escalá-la, como
tantos outrora haviam feito. Porem, já não havia jabuticabas e ele chorou.
Atrás dele chegou um garoto ruivo, seus olhos eram de fogo, mas seu coração não
tinha cor. Ele olhou para cima e descobriu bem lá no alto uma enorme e
brilhante jabuticaba, a mais preta e grande jamais nascida. Almejou-a e se pôs
a subir de galho em galho ao seu encalço. Ia se aproximando cada vez mais do
seu prazer, que era mau.
Mas o loiro acordou do seu torpor, parou de chorar e,
com seus olhos azuis, também viu a bela e única jabuticaba que restara. Com um
coração mais ardente de paixão e com vontade destemida, galgou aquela árvore da
vida, desejando ser ele a saborear aquela derradeira fruta, que parecia um
diamante negro lapidado pelo vento. Seu amor era mais leve, por isso subiu com
agilidade e passou o ruivo. Este, vendo-se suplantado, odiou o loiro que a sua
frente subia com coragem; se encheu de brios e desejou chegar à frente para
esmagar com raiva e desprezo na cabeça de seu inimigo aquela última jabuticaba.
O loiro chegou primeiro e primeiro apanhou a formosa
e extrema fruta. Mas não soube ou não quis saboreá-la logo: contemplou-a com
adoração, pensando ser ele o último a desfrutar daquele mel.
Demorou-se em pensamentos e essa sua fraqueza foi
fatal. O ruivo alcançou-o e tomou-lhe com a força do seu ódio a negra fruta. Ia
esmagá-la, sem dó nem compaixão naqueles dourados cabelos, quando ouviu, vindo
do chão, a voz altiva e intrépida de um garoto de cachos morenos e olhos
negros, que lhe ordenava a se deter e não seguir adiante na sua insensata ação,
pois chegara a hora em que nem ruivo e nem loiro poderiam mais usufruir com
amor ou com ódio daquele fruto de pulcro interior.
Com olhos inflamados pela raiva, o garoto ruivo jogou
violenta e determinantemente sobre o moreno aquela última e desventurada
jabuticaba, que fatalmente iria se esmagar naqueles cabelos trigueiros.
Mas não era um qualquer que debaixo alçara a voz.
Seus reflexos eram ágeis e sua delicadeza firme. Por isso, antes que a doce
jabuticaba pudesse explodir e perder-se em seus fios capilares, ela foi
amortecida em suas mãos e acolhida com amor jamais brotado de um coração
menino. Naquelas mãos brancas a majestade da fruta tornou-se mais exuberante e
o moreno, com prazer insuperável e gigante serenidade, saboreou aquela última
jabuticaba e foi feliz.